domingo, 29 de agosto de 2010

Terreiro da Casa Branca: patrimônio do Brasil


O Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, chamado em iorubá (língua ritual de seu culto) Ilê Axé Iyá Nassô Oká, é um dos mais antigos e respeitados santuários da religião dos Orixás. Deu origem a centenas de outros terreiros, por todo o País. Dele descendem, por exemplo, os famosos templos do Gantois e do Axé Opô Afonjá, cada um deles fonte de inúmeros outros. Por isso o poeta Francisco Alvim, evocando Edson Carneiro, chamou essa venerável matriz de "Mãe de Todas as Casas".

Implantado a princípio na Barroquinha, em pleno Centro Histórico de Salvador, o famoso Ilê Axé (santuário, em iorubá) que tomou o nome de sua fundadora, a princesa Iyá Nassô, foi o primeiro templo religioso não católico a ser tombado como patrimônio histórico do Brasil (Processo número 1.067-T-82, Inscrição número 93, Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, fls. 43, e Inscrição número 504, Livro Histórico, fls. 92. Data: 14. VIII. 1986). Este tombamento foi decidido em maio de 1984, em reunião do Conselho do IPHAN, e foi homologado em 27 de junho de 1986 pelo então Ministro da Cultura, Celso Monteiro Furtado, nos termos da Lei de número 6292, de 15 de dezembro de 1975, e para os efeitos do Decreto-Lei número 25, de 30 de novembro de 1937.


Mas não é só isso: o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho foi também reconhecido patrimônio cultural da Cidade do Salvador pela PMS, que primeiro o tombou e depois o tornou Área de Preservação Cultural e Paisagística deste município (Decreto Municipal 6.634 de 04.08.82, publicado em 08/08/82; Lei Municipal número 3.591, de 16/12/85). O terreno que encerra os seus principais templos foi desapropriado pela PMS para doação à associação civil que representa sua comunidade religiosa (Decreto Municipal número 7.321 de 05 de junho de 1985, publicado no Diário Oficial do Estado da Bahia em 08 e 09/11/85, retificado pelo Decreto Municipal de número 7.402, de 16/10/85, também publicado pelo Diário Oficial deste Estado). Posteriormente, o Governo do Estado desapropriou também, para o mesmo efeito (Decreto número 292 de 8 de setembro de 1987), um posto de gasolina que ocupava indevidamente a chamada Praça de Oxum, praça que integra o conjunto monumental deste famoso Terreiro. Tudo isso está bem documentado, é de conhecimento público e matéria de lei que não pode ser ignorada. Teve ampla divulgação na imprensa local e nacional. Tanto a União, através do IPHAN e da Fundação Palmares, como o governo municipal de Salvador investiram na restauração dos monumentos deste Ilê Axé, que agora a Prefeitura soteropolitana ameaça leiloar.

A exposição de motivos que fundamentou o tombamento do Terreiro da Casa Branca pelo IPHAN e os estudos que serviram de base para a edição dos diplomas legais que consagraram a área deste templo e o conjunto de seus monumentos como patrimônio cultural de Salvador o caracterizam enfática e reiteradamente como um templo religioso.

Não cabe dúvida de que o Terreiro da Casa Branca merece esta categorização. Documentos etnográficos e laudos periciais o atestam abundantemente. De resto, este monumento, reconhecido como patrimônio do Brasil, foi tombado como templo religioso pela União e pelo Município... Podem, portanto, dar testemunho neste sentido tanto o Governo Federal quanto a Prefeitura Municipal do Salvador. De resto, além de decretar seu tombamento, o prefeito Manoel Castro também isentou de impostos o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho.

O registro desta célebre Casa nos livros de Tombo Histórico e Etnográfico do IPHAN não foi um ato infundado. Longe disso. Quem tiver dúvidas de seu valor para a memória afro-brasileira pode hoje consultar uma obra magnífica que aborda sua história secular, assinalando, também, suas profundas raízes nos reinos africanos de Oyó e Ketu: refiro-me ao belo livro de Renato da Silveira, "O Candomblé da Barroquinha", editado pela Maianga em 2006. Pode também consultar tese de doutorado de Rafael Oliveira, defendida em 2004 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA, que além de fazer-lhe a etnografia aborda a imensa rede de centros de culto afro-brasileiros ligados ao famoso candomblé do Engenho Velho. Mas isso para falar só de obras recentes... Livros de escritores e artistas do porte de Jorge Amado e Carybé, de etnógrafos como Pierre Verger, Vivaldo da Costa Lima e Roger Bastide falam abundantemente desta Casa sagrada; na verdade, na etnografia do Candomblé baiano é difícil encontrar um estudo que não lhe faça referência.

O prestígio do templo da Casa Branca do Engenho Velho não se circunscreve a Salvador nem ao mundo do Candomblé. Este Terreiro já foi visitado por um Presidente da República (Juscelino Kubitschek), por um Prêmio Nobel (Wole Soynka), por ministros e secretários de Estado, por religiosos de diferentes credos e de diversas partes do mundo: já foram recebidos em seu sagrado recinto um emissário do Vaticano, uma delegação de pastores evangélicos da Noruega, reis-sacerdotes da Nigéria, xamãs indígenas como os xinguanos Raoni e Tacumã e muitos outros visitantes ilustres. Da Comissão de Defesa da Casa Branca participaram, entre outros, o Abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio e os comunistas Haroldo Lima e Fernando Santana. A restauração da Praça de Oxum foi feita com base em projeto de Oscar Niemeyer, que o presenteou à comunidade do templo de Iyá Nassô. Três Governadores Baianos (Waldir Pires, Antônio Carlos Magalhães e Jaques Wagner) e vários prefeitos de Salvador já foram recebidos no célebre Terreiro e lhe fizeram homenagem. Nenhum desses visitantes ilustres jamais acreditaria que se pudesse pôr em dúvida a condição de templo religioso da Casa Branca do Engenho Velho.

Como todos sabem, a Constituição Brasileira, no seu artigo 150, considera imunes de impostos os templos religiosos. Mas uma coisa ninguém compreende: porque motivo, ou com que propósito, a Prefeitura Municipal do Salvador insiste em cobrar imaginário débito de IPTU ao Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho e ameaça levar a leilão seus monumentos, seu território sagrado. Por acaso cobra-se IPTU da Igreja do Bonfim, dos templos da Igreja Universal, dos lugares sagrados de outros credos e denominações religiosas em Salvador?

Porque com as religiões do povo negro há de ser diferente? Por que os templos afro-brasileiros são tratados de forma discriminatória? Não estão as autoridades do município conscientes de que o povo da Bahia merece respeito e suas tradições de origem africana devem ser valorizadas? Esqueceram-se disso? Esqueceram a própria legislação municipal?

As ameaças que acompanham a impertinente, obstinada, importuna e desrespeitosa cobrança de um imposto indevido têm levado o desassossego a veneráveis e idosas sacerdotizas, ao povo-de-santo da Casa Branca e de toda a Bahia. É preciso pôr fim a esta ofensa ao sentimento democrático dos baianos; é imperativo fazer cessar este insulto à cultura, esta agressão ao direito. O povo baiano não aceita esse vexame.

Ordep Serra é antropólogo, professor doutor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e Ogã da Casa Branca.

Fale com Ordep Serra: ordepserra@terra.com.br

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fonte:http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3056341-EI6578,00.html